Icônico cronista esportivo morre aos 90 anos em Porto Alegre Ruy Carlos Ostermann, comentarista e autor de livro do Penta, morre aos 90 anos
Lá no finalzinho dos anos 2000, saí para jantar com Ruy Carlos Ostermann e outros jornalistas esportivos em Recife. Foi a única vez em que estive com o Professor, como era chamado o icônico cronista que nos deixou nesta sexta-feira, aos 90 anos, em Porto Alegre. Naquela noite, tivemos uma conversa rápida, curta – e que jamais esqueci.
Jamais esqueci por dois motivos. Primeiro pelo desconforto: durante o jantar, uma das pessoas à mesa caçoava Ruy. Disfarçadamente, imitava-o, ironizando sua erudição, seu modo de falar – uma provocação que ele, já com mais de 70 anos, ou não percebia, ou fingia não perceber. E segundo pela leveza que se apossou dele quando falamos sobre literatura.
Em dado momento, Ruy disse que gostaria de voltar para o hotel. Eu me ofereci para acompanhá-lo, embora não nos conhecêssemos. Quando saímos do restaurante, ele estava taciturno – talvez cansado, talvez aborrecido. Mas mudou de expressão quando resolvi perguntar o que ele estava lendo.
Ruy Carlos Ostermann
Anderson Fetter/Agência RBS
Ele citou um português, acho que Gonçalo M. Tavares, que naquele momento já se destacava. E emendou com outros autores portugueses que havia lido. Por cinco ou dez minutos, nas três ou quatro quadras entre o restaurante e o hotel, à beira da praia da Boa Viagem, falou sem parar. E eu fiz aquilo que me convinha: escutei.
Trago essa história (espero que ela não configure um lamentável “eubituário”) porque a considero ilustrativa em diferentes aspectos: pelo conhecimento de Ruy, mas também pelo desconforto que, especulo, ele poderia sentir em um ambiente por vezes reativo a figuras assim. Mas sobretudo porque traz duas pontas que o Professor, como poucos, soube unir: o futebol e a literatura.
Esse vínculo esteve explícito no livro “Meia encarnada, dura de sangue”, organizado por Ruy, no qual ele reúne textos de grandes escritores gaúchos em que o futebol está presente. Mas, na prática, foi uma relação que se infiltrou na obra do Professor o tempo todo, sempre que ele empunhou um microfone ou escreveu uma coluna. Porque Ruy, como Nelson Rodrigues e Armando Nogueira, percebeu que futebol e literatura são irmãos.
Ruy Carlos Ostermann com Felipão
Mauro Vieira/Agência RBS
Não por acaso, chamamos de narrador a pessoa que nos relata o que acontece no jogo – como fazemos com a voz literária que nos conta uma história. O personagem, o protagonista, a jornada do heroi, a trama, o suspense, a reviravolta – essa miríade de elementos a serviço do drama, do épico, às vezes do cômico: é da literatura (da ficção em geral) e também é do futebol.
Ou, como escreveu Ruy em “Meia encarnada, dura de sangue”, na apresentação de um excepcional capítulo de “Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez”, de Tabajara Ruas, “o que na aparência se mostra como uma descrição realista do jogo na verdade está abrindo o campo dos desejos e dos fracassos que o futebol concentra para a revelação dos seus personagens. É o ponto em que tudo parece integrado: a matéria da ficção e seus elementos, a referência ao mundo e o reduto fechado que antecede as grandes perdas ou as melancólicas conquistas.”
Ruy Carlos Ostermann esteve mais de 30 anos no Sala de Redação
É a vida. No jogo que começa, no livro que se abre, o que surge é uma representação da vida – essa sucessão caótica de episódios que equilibramos todos os dias entre injeções de beleza e de horror.
Ruy soube entender essa conexão, soube defendê-la, e por isso serei sempre grato.