Há 40 anos, tragédia na final da Champions matou 39, baniu ingleses e guiou reforma no futebol

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Em 1985, decisão entre Juventus e Liverpool foi marcada pela violência nas arquibancadas e ficou conhecida como Tragédia de Heysel “Tragédias impulsionaram mudanças no futebol inglês e mundial”, explica Irlan Simões
Existem somente duas certezas em uma final: um lado sairá feliz, enquanto o outro sairá triste. Em 1985, na decisão da Taça dos Campeões Europeus, a violência e a falta de organização tomaram conta das arquibancadas do sucateado Estádio de Heysel, em Bruxelas, na Bélgica.
O resultado do campo foi o menos importante daquela noite. Ao todo, 39 pessoas morreram e outras 600 ficaram feridas. O ge conta a história de um dos dias mais lamentáveis do futebol europeu, que completa 40 anos nesta quinta-feira.
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Confronto entre policiais e torcedores do Liverpool em Heysel, na final da Champions de 1985
Peter Robinson – PA Images via Getty Images
Era para ser mais uma grande final entres dois bons times. O Liverpool voou pelo mata-mata sem sustos até a final, enquanto a Juventus de Paolo Rossi e Michel Platini, algozes do Brasil nas Copas de 1982 e 1986, havia passado sufoco nas semifinais, contra o Bordeaux. O futebol ficou longe de ser a grande notícia da noite.
Hooliganismo e violência em Heysel
Muito antes da bola rolar, a cidade de Bruxelas já indicava o que poderia acontecer dentro do Estádio de Heysel. A violência havia tomado conta da capital belga, com hooligans ingleses exercendo a fama que ganharam durante os anos 70 e 80. Chamados de beberrões e vândalos, os britânicos eram temidos nos grandes jogos da Europa.
Paris já havia sofrido com torcedores do Leeds United em 1975, quando a equipe inglesa foi vice-campeã da Taça dos Campeões Europeus para o Bayern de Munique. Nos anos seguintes, os hooligans de outros clubes do Reino Unido fizeram questão de continuar o legado. Quem explica o movimento é Irlan Simões, jornalista (ge e sportv), pesquisador vinculado ao PPGCom/Uerj (pós-doc Faperj) e fundador do Observatório Social do Futebol:
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Também existia uma finalidade política. Existiam grupos de extrema-direita que tentavam potencializar esses jovens, geralmente de classe trabalhadora, muitos deles revoltados com as mudanças estruturais e econômicas que colocaram eles uma situação pior. Há todo um caldo político, cultural que envolve esses jovens britânicos que vai reforçar um ódio de classe, um ódio de raça, um ódio de origem, uma xenofobia, um racismo.
Heysel estava longe de ser o paraíso para o final da competição. O estádio, construído em 1935, estava há 11 anos sem receber uma decisão da Taça dos Campeões. As condições não eram as melhores, e existia a ideia de trocar a sede da partida, mas a Uefa optou por continuar na capital belga.
Irlan Simões explica movimento do hooliganismo na Inglaterra nos anos 70 e 80
Na divisão da arquibancada, os dois setores “do meio” ficariam para a torcida mista, enquanto a Juventus teria os portões O, N e M. Para o Liverpool, estavam destinados os setores Y e X, enquanto o Z seria vendido para torcida neutra e torcedores italianos.
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Tragédia de Heysel na final da Champions de 1985
David Cannon/Allsport
Em Heysel, os ingleses eram maioria. A torcida do Liverpool abriu uma fenda que aproveitava os problemas do velho estádio e invadiu o setor Z. Foi uma hora de puro terror na arquibancada. Os ingleses agrediram e pressionaram os italianos nas grades, e 39 pessoas morreram. A partida foi disputada mesmo com o ocorrido.
Consequências e mais tragédias
O futebol inglês pagou pela tragédia. A Uefa baniu os times ingleses de suas competições por tempo indeterminado – eles só voltariam em 1990, e o Liverpool em 1991.
O governo começou com medidas para mudar o futebol inglês. A Tragédia de Heysel ocorreu em 1985, mas outros casos voltariam a acontecer. No dia 15 de abril de 1989, a semifinal da FA Cup entre Liverpool e Nottingham Forest, no Estádio Hillsborough, em Sheffield, foi palco do maior desastre do futebol inglês. Noventa e cinco torcedores do Liverpool morreram pisoteados, enquanto 766 ficaram feridos. Uma vítima morreu no ano seguinte, enquanto outra faleceu em 2021 após ficar 32 anos em estado vegetativo por conta da tragédia.
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tragédia de hillsborough
Getty Images
Os estádios da Inglaterra tinham grades que separavam a arquibancada do gramado (estratégia para conter os hooligans), algo que serviu ainda mais para prensar os torcedores. O setor Leppings Lane Terrace, uma espécie de “geral” na qual era possível assistir aos jogos em pé, recebeu 10 mil torcedores naquele jogo. Sete catracas controlariam o acesso, mas só uma estava funcionando propriamente. A aglomeração do lado de fora foi formada, e a solução foi abrir um dos portões de saída.
Com superlotação, a polícia conteve quem saltava a grade para se salvar, acreditando que estavam invadindo o campo. Muitos pularam e ficaram feridos, mas outros caíram e deixaram a vida naquela arquibancada.
O que entrou no cálculo foi ocultar aquele problema (dos padrões de segurança) com a culpa aos hooligans ingleses. Não foram eles que causaram aquele problema. Serviu para dizer que precisava fazer um grande plano de reestruturação do futebol inglês para combater o hooliganismo
Uma nova forma de torcer
Para o governo de Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido entre 1979 e 1990, não havia outra opção a não ser reformular completamente o futebol inglês.
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Margaret Thatcher visita Estádio de Hillsborough após tragédia
Ross Kinnaird/EMPICS via Getty Images
Em janeiro de 1990, o “Relatório Taylor”, feito para investigar a Tragédia de Hillsborough, determinou que todos os estádios de Inglaterra e Escócia deveriam ser compostos 100% por assentos, sem espaço para torcer em pé. Era algo incomum em um futebol britânico de puro caos e pouca organização.
– Ele tem pontos importantes. Quebra coisas naturalizadas no futebol… a ideia de superlotação ser tratada como normal. No futebol inglês, primordialmente, para elitização dos estádios. Tiveram que reformular os estádios, os clubes tiveram grandes endividamentos, buscaram novos proprietários e passaram a entender que os estádios não eram mais para aquele público de classe trabalhadora que estava, historicamente, ocupando os estádios ingleses.
Os processos ocorriam para mudanças no futebol inglês, mas foi a criação da liga que fez tudo ficar completamente diferente. Em 1992, foi iniciada a Premier League, hoje o campeonato mais poderoso da Europa. O historiador Luiz Antônio Simas, no livro “Maracanã: quando a cidade era terreiro”, de 2021, aborda o papel do governo britânico:
O governo Thatcher, especialmente, atacou o futebol com razões e objetivos mais profundos: a disciplinarização e contenção das massas urbanas; os confrontos com os sindicatos de trabalhadores; o sufocamento de movimentos de resistência ao desmonte do estado de bem-estar social no Reino Unido; o ataque e a criminalização de qualquer tipo de organização capaz de ensejar laços de sociabilidade, apropriar-se de espaços públicos e construir redes de proteção entre os mais pobres.
Modelo vira padrão no mundo
O caso inglês tornou-se inspiração para muitos ao redor do planeta. Não são poucos os casos de ligas que se espelham na Premier League, ou arenas que parecem cada vez mais com os estádios britânicos. A partir dos anos 2000, o país criador do futebol exportou mais padrões.
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Obras no Maracanã para a Copa do Mundo de 2014
Shaun Botterill/Getty Images
— É outro momento do futebol. A consolidação da ideia de que o estádio tem que ser uma arena para atingir um padrão de excelência vem quando a Fifa adota esse modelo. A Copa do Mundo de 1998 é o primeiro ensaio. O Relatório Taylor é um ponto de partida — continuou Irlan.
O Brasil também entrou no padrão. Para a Copa do Mundo de 2014, os estádios que receberiam a competição precisavam entrar nos moldes da Fifa. As reformas bilionárias foram feitas, e a Copa, apesar de protestos, aconteceu.
Em 40 anos desde a Tragédia de Heysel, o futebol mudou no campo, na arquibancada e na televisão. Do dinheiro que circula aos padrões táticos, é um esporte diferente. Os estádios/arenas recebem mais mulheres, crianças e famílias, mas o preço dos ingressos é uma questão e batem na elitização do esporte.
No Rio, a geral do Maracanã, que tinha ingressos baratos, deixou de existir em 2005. Em 1992, três pessoas morreram em um Flamengo x Botafogo com a queda da arquibancada no público. Até hoje, brigas em clássicos são cenas frequentes. É um futebol diferente, mas com muitas semelhanças ao passado.